Texto: Kaiky Fernandez | Fotografia: Match Pachy
Desde pequeno sempre amei desenhar. Como boa parte dos meus colegas na época, fazer desenhos de carros ou de personagens de desenhos animados era uma das minhas atividades favoritas.
Quando comecei a frequentar a igreja evangélica, e posteriormente me converter, senti a necessidade de expressar nos meus desenhos coisas que faziam referência à Bíblia ou que traziam mensagens cristãs explícitas. Eu não podia mais desenhar o Goku, pois ele não era “de Deus”. Precisava desenhar um herói bíblico, como Davi ao derrotar Golias.
Essa ideia de que há “coisas de Deus” e “coisas do mundo” recebe o nome de dualismo. Dualismo é uma visão de mundo que divide a existência entre o sagrado e o secular, sendo que todas as coisas ditas como “espirituais” (oração, leitura bíblica, culto dominical, etc.) pertencem à esfera do sagrado, enquanto as coisas não-espirituais (trabalho, lazer, etc.) estão na esfera secular.
O problema é que essa forma de interação entre a fé cristã e a cultura pode ser nociva para nós e para nossa sociedade, por reduzir nossos esforços apenas à evangelização, ou seja, na busca pela salvação da alma. O perigo está em desconsiderar que a Palavra não nos ordena apenas em ir e fazer discípulos, mas algo muito além disso.
Deus nos deu três mandatos, ou seja, três missões: uma espiritual, que se refere à relação do homem com Deus; uma relacional, que se refere à relação do homem com o próprio homem; e uma cultural, que se refere à relação do homem com a criação. Me atentarei a essa última, para a qual Maurício Cunha diz o seguinte:
“Quando Deus mandou o homem dar nomes aos animais, ele estava convidando-o a iniciar o seu papel na administração e no desenvolvimento da criação. O homem foi criado para cuidar do jardim (…).” [1]
Somos jardineiros. Precisamos cuidar e desenvolver o Jardim. Deus nos ordenou cuidar do jardim (a criação), a desenvolvê-lo, a criar nele, a produzir. Interessante notar que esse contexto ao qual Maurício se refere era pré-queda. Mas se formos ver o que Deus diz quando seu povo estava exilado na Babilônia, veremos que não há grandes diferenças:
“Construam casas e morem nelas. Plantem árvores frutíferas e comam as suas frutas. Casem e tenham filhos. E que os filhos casem e também tenham filhos. Vocês devem aumentar em número e não diminuir. Trabalhem para o bem da cidade para onde eu os mandei como prisioneiros” (Jr 29:5–7a).
Fica evidente, portanto, que o mandato cultural não é algo apenas pré-queda e tampouco apenas pós-queda. É um mandato de Deus para nós em toda situação. Em outras palavras, Deus nos ordena produzir cultura!
“Por cultura queremos dizer os gostos que regem um povo específico, seja das elites (alta cultura) ou as massas (cultura popular). Embora em cada cultura existam muitas subculturas, existem tendências gerais que marcam um povo, e é isso o que entendemos como cultura (…).” [2]
Então temos um impasse: como relacionar nossa fé com a cultura? O teólogo Michael S. Horton aponta 5 possíveis caminhos, sendo que o último deles é o que eu considero o mais satisfatório:
1. Cristo Contra a Cultura: foi um pensamento desenvolvido no século III, período de grande perseguição aos cristãos. É a ideia de que a fé cristã nada tem a ver com a cultura secular, pelo contrário, se opõe a ela, desprezando-a. Esse pensamento foi retomado no século XVI por uma segmentação teológica do protestantismo chamada de “anabatista”.
2. O Cristo da Cultura: no outro extremo, temos um caminho liberalista que vê Cristo pelas lentes da cultura e entende que Ele sempre a abençoa, salvando apenas a “alma” e deixando nosso corpo livre para viver como convém.
3. Cristo Acima da Cultura: pensamento atribuído a Tomás de Aquino, entendendo que Cristo não é nem contra e nem a favor da cultura. Ao invés disso, encontra-se num âmbito acima dela.
4. Cristo e a Cultura em Paradoxo: esse quarto caminho é aquele que eu seguia no relato que fiz no início desse texto. Refere-se ao dualismo. É a ideia de que existem dois mundos, o espiritual e o secular, sendo que cada qual possui propósitos e atuações diferentes.
5. Cristo, o Transformador da Cultura: esse último caminho entende que Cristo se interessa pela cultura, que uma vez corrompida pelo pecado, agora precisa ser transformada. Nessa visão, Deus é senhor tanto sobre as coisas, tanto das ditas “espirituais”, quanto das “seculares”, e portanto, devemos servi-lo atuando em ambas.
Considero o caminho mais interessante!
Segundo Horton, os adeptos desse quinto caminho entendem que:
“O problema não é o mundo, mas a oposição voluntária do mundo a Deus e ao seu Cristo. Isso liberta o crente para participar no mundo como cidadão de plenos direitos, vendo-o não como inerentemente mau, mas como o teatro em que tanto a glória de Deus quanto o pecado humano são expostos. (…) Assim, para o transformador, não basta simplesmente cuidar da alma; ele considera toda a vida humana. Deus é criador e redentor, e redime não só a alma da pessoa como também ‘faz com que todas as coisas sejam novas’.” [3]
Diante de tudo isso, meus irmãos, reproduzo aqui a frase de Harold Best:
“Biblicamente falando, a produção artística não é uma opção, é uma ordem”. [4]
A produção artística é uma ordem! E não me refiro apenas à produção gospel ou com fins congregacionais (e não há nada de errado com essa segunda). Mas precisamos - urgentemente - interagir com a cultura, atuar nela, levar questionamentos, apresentar respostas, trabalhar lado a lado com não-cristãos, ser usados por Deus para redimir nossa música, nossas artes visuais, nosso cinema, nossa literatura.
Por favor, não fique preso no gueto gospel. Deus é o Senhor tanto do culto, quanto da cultura. Que possamos glorificá-lo também nela, também na segunda-feira, e não apenas nas nossas reuniões dominicais.
Seja você musicista, artista visual, grafiteiro, designer, redator… independente da sua área, te faço um sincero convite ao engajamento cultural.
Participe da cena cultural da sua cidade! Não apenas consumindo, mas também propondo, produzindo. Cuide e desenvolva o Jardim.
Que Deus, através do seu Espírito, nos dê sensibilidade, sabedoria e atitude.
_ Referências:
[1] CUNHA, Maurício. O Reino Entre Nós. Viçosa: Últimato, 2013, p.25
[2] HORTON, Michael S. O Cristão e a Cultura. São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p.38
[3] Ibid., p.45
[4] BEST, Harold. Music Through the Eyes of Faith. São Francisco: Harper Collins, 1993.
Kayky Fernandez é formado em Design Gráfico, especialista em Gestão de Marketing, estudante de Teologia e coordenador do Invisible College. Casado com Bruna Rodrigues, faz parte da Igreja Cristã Farol Esperança em Goiânia, GO.
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