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História e Destino


Texto por: Marivaldo Lima | Fotografia: Levent Simsek



Decidi ouvir, no caminho ao trabalho, o livro de Josué. Fui tomado pela alegria de um livro sobre triunfo, de um povo que há anos vivia perdido, sem esperança e, aparentemente, sem destino. Josué, orientado pelo Eterno, aprumou o povo de Deus e viveu momentos que marcaram a futura nação de Israel.


Confesso que o momento que mais saltou-me os olhos foi quando Josué, diante de um ajustamento das tribos – na chamada Assembleia de Siquém - no seu discurso de despedida, decide fazer um breve resumo da história do seu povo, de modo a lembrá-los de que o seu Deus esteve presente desde o seu nascimento.


Posteriormente, comentando com um amigo, nos longos áudios de whatsapp, chegamos há um paradigma: os homens de Deus sempre resgatam a história do seu povo para sustentar a força de um Deus que opera milagres de geração em geração. É notório que em cada nova etapa da história de Israel – a conquista, os juízes, a monarquia – o protagonista, à sua época, antes do fim da sua trajetória na terra, relembra as grandes ações de Deus no passado e promete Sua assistência para o futuro, contanto que seu povo permaneça fiel. De acordo com o comentário bíblico da Bíblia de Jerusalém, “para Moisés e Josué, essas despedidas estão ligadas à renovação da aliança” (Dt 31).


Sem dúvida, podemos observar esse padrão em boa parte dos escritos bíblicos. Diante dos desafios do retorno do povo hebreu à sua terra prometida, na intenção de fazer o correto diante de Deus (Ne 13:1); quando Salomão inaugura o templo ao Senhor (2 Cr 6:5); na despedida de Samuel (1Sm 12); no testamento de Davi (1Rs 2:1-9) e no marcante fim do primeiro mártir do cristianismo, Estevão (At 7).


Todo esse passeio nos relatos bíblicos me fez pensar um pouco no papel da história, em como ela tem esse poder em fundamentar o presente, ordenando os papéis sociais através do que aconteceu e operar no futuro, como uma bússola, guiando e cooperando para o destino de povos e nações.

A História realmente tem esse poder de fusão dos eventos temporais e comportamentos humanos de um certo período.

Dentro dessa reflexão, deparei-me com a relação, e mais, disparidade, entre o que vemos nas narrativas bíblicas e em um dos romances que li esse ano: Incidente em Antares, do Erico Veríssimo (Cia das Letras 2006).


Esse romance merece um pequeno e simples resumo:


Numa pequena cidade, pacata, patriarca e, um tanto estranha, seis mortos decidem sair dos seus caixões para reivindicar o porquê de uma greve geral impossibilitá-los de um enterro decente. Os coveiros estavam em greve, a propósito.


A princípio isso parece imensamente estranho se não piorasse: parte dos mortos eram pessoas proeminentes na cidade, que guardariam no túmulo segredos que poderiam devastar a vida de pessoas altamente influentes na cidade, como o Coronel, Prefeito, grandes fazendeiros, etc. E foi isso que não aconteceu, pois eles, os defuntos, em praça pública, decidem largar os segredos mais obscuros da nata da cidade: traições, lavagem de dinheiro, conchavo político e assassinatos.

O fato ocorrido mexeu com os cidadãos, a priori, mas, após conseguirem ser enterrados, os defuntos perderam sua importância, menos para os incomodados ofendidos da cidade de Antares. Assim, foi-se montado uma comitiva para uma operação chamada Operação Borracha, que tinha como objetivo apagar esse fato da história da cidade, pois a notícia do estranho ocorrido tinha chegado às Gazetas do estado, chamando a atenção para aquela pequena cidade.


Assim, reuniram-se autoridades com um filósofo da cidade, o qual propôs apagar esse fato dos anais de Antares. Segue o trecho:


- Mas, professor, milhares de pessoas viram e ouviram os defuntos, inclusive eu, minha mulher e meus filhos...

O professor sorriu:

- Podemos sempre confiar no testemunho de nossos sentidos? Devemos dar crédito ilimitado a nossa memória?

[...]

- Eis que proponho organizar uma campanha muito hábil, sutilíssima, no sentido de apagar esse fato não só dos anais de Antares como também da memória de seus habitantes.

[...]

- O helenista prosseguiu: podemos contar com vários aliados nessa campanha, a saber: o tempo, que tem a função de borracha e água, pois aos poucos vai apagando e levando tudo.


E não é que isso deu certo? Anos depois, gerações posteriores pareciam nem lembrar d0 ocorrido. O livro relata que "alguns chegaram à conclusão de que tudo havia sido apenas um caso de alucinação coletiva, fenômeno raro, mas possível. A maioria, porém, ficou convencida de que a coisa toda não passava duma ridícula mistificação".


O extrato dessa ficção é um pequeno exemplo de que toda narrativa tende a ser multifacetária; ou seja, uma história pode ser (re)contada de formas diferentes e/ou intencionalmente modificada. Isso nos leva a crer que todo fato, recontado intencionalmente distorcido, pode custar caro para quem ouve.


Mas eu realmente não quero dar mais atenção a este pequeno exemplo, utilizei-o como contraponto ao que observamos nas Escrituras; quero focar na perspectiva bíblica acima descrita. De qualquer forma, vale o alerta!


Preciso afirmar que o povo de Deus teve um cuidado enorme em como contar os eventos do agir do Eterno sobre eles. É difícil não se surpreender ao observar que um evento bíblico ocorrido há quatro mil anos ainda pode acender uma chama de fé em nossos corações. Dei-me conta disso quando decidi brincar de “telefone sem fio” com minha família. É quase impossível manter, de modo coeso, a história de um pequeno evento entre quatro pessoas, imaginemos entre milhões e, ainda, por milhares de anos?


Por isso, ainda refletindo sobre o paradigma citado no início desse escrito, afirmo: os feitos de IAWEH sobre seu povo são a grande base que sustenta a fé de milhões de pessoas na terra; e eu creio que eles foram preservados por vários motivos.


Há uma relação muito forte entre HISTÓRIA / MEMÓRIA / IDENTIDADE e FUTURO / PROFECIA / DESTINO. A história dos pais da fé, por exemplo, orientou o futuro para onde Deus queria levar o seu povo. A memória do cativeiro fomentou profecias que fortaleceram o povo Hebreu para saírem da sua condição de cativos. O cuidado em relatar a identidade, descrito em Mateus 1, revela o destino do Messias em sacrificar-se e redimir a humanidade.


Em um dos relatos do livro descrito acima, um padre personagem afirma: a gente não deve nunca enterrar as coisas que ama.

Há um grande compromisso em nós, crentes, ao carregarmos uma história milenar, na qual não apenas ocorreu mas é um grande sinal para o que está por vir.

Ela deve permanecer acesa nas nossas memórias e corações; ela deve ser contada de geração em geração, para que os nossos filhos a mantenham, em suas memórias, feitos que mudaram a história do nosso povo.


Por fim, deixando as palavras de quem não só escreveu a história mas que a cumpriu, relato o evento em que Jesus foi indagado sobre como serão os sinais para o fim dos tempos. Ele, como dono da sabedoria eterna, para falar de algo que está por vir, utiliza um evento que já ocorreu na história, dizendo: como foi nos dias de Noé, assim também será na vinda do Filho de homem...


 

Marivaldo Lima é músico militar formado em Letras (Francês). Casado com Agatha, é pai do Lucas Gabriel e do Josué. Serve na Comunidade do Rei em São Gonçalo, Rio de Janeiro.

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